Quando o Bernardo nasceu e soubemos que ele tinha Síndrome de Down, foi como se alguém tivesse apagado todo o nosso futuro. É claro que ao nascimento de qualquer criança os pais têm diante de si um futuro imprevisível, mas esse futuro é povoado de sonhos, desejos, expectativas. O futuro para nós era de repente uma terra calcinada e vazia, um lugar desconhecido, assustador. Quando peguei o Bernardo nos braços pela primeira vez, já no quarto, olhei bem nos olhos dele e prometi a nós dois que eu ia povoar esse futuro novamente, com outros sonhos e certamente outras expectativas, mas com coisas boas. E foi assim que recomeçou o nosso amor. Depois vieram outros sentimentos, nem todos bons, é verdade, mas todos na esteira desse amor, o que me permitiu vivê-los – o medo, a tristeza, a angústia, a incerteza, a raiva – com menos culpa (nunca, para uma mãe, sem culpa). E foi como um pacto que eu tivesse feito com o Bernardo e comigo mesma: íamos viver tudo aquilo com muita verdade.
Nunca me iludi a respeito da Síndrome e de todas as implicações. Não é fácil. Mas pode ser tão bonito, tão doce, tão alegre. E acho que essa foi a minha grande contribuição para povoar o futuro do meu filho: eu o amo exatamente como ele é. Com a Síndrome, nunca apesar dela. Com as dificuldades, o trabalho, o tempo dele. E hoje, quando já nos conhecemos e nos reconhecemos tantas vezes, vejo com clareza o que eu gostaria tanto que todos vissem: que a Síndrome é parte do que ele é, mas de maneira nenhuma o define. E as diferenças, quaisquer que sejam elas, não passam disso: partes.
O Bernardo é doce, inteligente, engraçado. Mas também é teimoso, disperso, desafiador. Adjetivos que poderiam descrever qualquer criança. Mas ele é diferente – isso chega sempre antes – e tenho muito medo de como vai ser recebido em um mundo em que é minoria, um mundo veloz e exigente no qual ele vai ter que se esforçar o dobro para não ficar para trás. Será que vai encontrar pessoas bacanas, dispostas a ajudá-lo sem limitar sua capacidade de ir adiante com os próprios pés; dispostas a conhecê-lo e quem sabe amá-lo sem que esse amor se deixe reduzir, e reduzi-lo, pela compaixão? Será que por alguns instantes, como eu faço tantas vezes, vão simplesmente esquecer a Síndrome e ver só mais um menino, como tantos outros, que quer brincar, descobrir, experimentar, sonhar?
E de repente me dou conta de que o futuro está povoado novamente. De outras vegetações. E o que me assustava mesmo lá no início, percebo, era que estava vazio e eu não sabia se ia ser um lugar sombrio ou luminoso. Hoje o futuro que eu observo é luminoso com lugares de sombra onde moram muitos medos de novas espécies. Continua sendo um território que me anteciparei para conhecer a fim de protegê-lo, sem que a minha antecipação me dê a mínima garantia de sucesso. Não poderei, admito, salvá-lo dos que deixam o medo ser maior do que o peito aberto. Não poderei afugentar as pessoas cruéis munidas da certeza de que não precisam se dar o trabalho de dar a ele uma chance. Nada poderei fazer em relação aos pobres de espírito que habitam o mundo e cujas garras se estenderão sobre o futuro do meu filho. Mas posso desejar, e fazer o que estiver ao meu alcance, para mostrar que não é preciso tanta pressa em encerrar o julgamento. Que o Bernardo tem tanto ou mais a ensinar a nós que nos consideramos normais quanto nós achamos que temos a ensinar a ele. E posso e quero ser movida pelo desejo perfeitamente cabível de que o meu filho, de que todos os filhos, de todos os tipos, possam ser diferentes, mas se sentir iguais. Que eles possam ir em direção ao futuro ignorando solenemente os caminhos que nós imaginamos, as paisagens que construímos. Porque essas coisas não passam de tolos desejos de pais para um filho e não precisam nem devem corresponder à realidade. Para melhor, tomara.
*Crédito da imagem: string_bass_dave