Eu lembro exatamente do primeiro dia que a vida deu uma rasteira na minha filha. 18 de março de 2013. Ela tinha 2 anos e 6 meses. Busquei Victoria na escola e ao invés de tocar a campainha para que o pai abrisse a porta fazendo a brincadeira costumeira dos dois, eu abri a porta de casa com a minha chave. Tudo apagado, o pai não estava lá.
Foi a primeira noite, nós duas sozinhas, sem ele. Me lembro das perguntas silenciosas, da madrugada que avançou com ela acordada perguntando pelo pai, do vazio que tomou conta dela por tantos meses. E que eu, forçosamente, precisei lidar. Desde então, continuo abrindo a porta de casa todas as noites. Só que, nos últimos três anos, a brincadeira ao chegar em casa mudou para algo que só nós duas entendemos. Mas eu me lembro de olhar para ela, um bebê, precisando lidar com sua primeira perda e pensar: “a vida não é justa”.
4 perdas substancias em 2 anos
Meses depois a cadela do porteiro do prédio ao lado morreu. Hanna era uma boneca, uma Golden de uns 3 anos. O porteiro ficou uns 2 anos tentando aproximar uma apavorada Vicky da cadelinha ansiosa por um carinho de criança. Quando finalmente Victoria perdeu o medo, a Hanna se foi inesperadamente. Vicky 0 x Vida 2.
Quando Victoria fez 4 anos a babá, que a acompanhava desde os 2 anos, se foi inesperadamente, sem uma despedida apropriada. Honestamente, acho que essa foi a pior rasteira. O pai não mora mais com ela, mas é presente em sua vida. A lembrança da Hanna foi rapidamente substituída pela do Átila, irmão que passou a morar no prédio ao lado. Mas a babá ela nunca mais viu. Ainda hoje ela chora essa perda em dias mais sensíveis. Lembro de pensar mais uma vez na injustiça da vida ao acarinhar minha filhota e fazê-la entender conceitos como amor, saudades, perda, tudo misturado no mesmo pacote. Que mer%¨&*da viu, gente?
Por fim, a cereja do bolo foi quando minha vó morreu no final de 2014. Ela não chegou a conhecer a bisa na flor da vida. Quando Victoria nasceu, minha vó já estava senil há alguns anos e nunca chegou realmente a reconhecer a bisneta. Mas como a família sempre se reuniu para compartilhar as histórias deliciosas, pitorescas e até as mais dolorosas da matriarca da família, Vicky sentiu sua perda mesmo assim e, de vez em quando, chora ao ver sua foto.
Filha, a vida não é justa
Não fui capaz de colocar lentes cor de rosa em nenhuma delas para atenuar a tristeza da minha filha. Em todos esses momentos essa pobre mãe que vos fala precisou usar de criatividade extra para consolar, ensinar a enxergar coisas positivas em meio a dor e fazê-la entender que a vida não era justa mesmo. Que, de vez em quando, coisas ruins acontecem com pessoas boas.
E, ao longo desses últimos três anos pensei em tantas frustrações que ela experimentou. Desde coisas mundanas, como a bola de sorvete que caiu no chão quando já estávamos bem longe da sorveteria. Do brinquedo caro que eu não tinha dinheiro para comprar (ou que jamais compraria mesmo que tivesse dinheiro). Até coisas mais doídas como os amigos que mudaram de escola; o fato de que ela não terá a sonhada irmã (e nem um cachorro); e coisas absolutamente egocêntricas como o fato de que ela não é a criança mais velha da sua turma; não foi a primeira do grupo a perder os dentes de leite e por aí vai.
Acredito piamente que as experiências que vivemos quando crianças moldam os adultos que seremos. Penso ainda que, como mãe, minha vontade é deixar minha criança dentro de uma bolha de felicidade, onde tudo é lindo, possível e agradável. Mas também sei o quão errado seria fazer isso, além do trabalho que seria blindá-la de qualquer frustração, injustiça ou desastre emocional. Naturalmente que eu tento pintar as dores mais profundas com tons mais pasteis.
Dentro do possível tento tornar sua dor só um pouco mais maleável. Mas não fazê-la desaparecer por completo, pois a vida não é mesmo justa, mas temos que vivê-la. E como educamos e guiamos nossos filhos nas incertezas da vida na infância é importante para que eles criem uma “casca mais grossa” e maturidade emocional para quando não mais estivermos do lado deles para assoprar a ferida e colocar uma atadura.
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