Uma simples frase – “Mamãe tá de dieta” – pode provocar uma revolução.
ela toma sorvete e a mãe com cara de que nem queria mesmo.
Desde novembro que eu comecei um processo de emagrecimento. Como vocês sabem, eu venho de um passado de luta inglória com a balança. Perdendo feio, perdendo rude. Cheguei ao meu pior peso da vida. Precisando perder urgentemente pelo menos 50 kg pra poder voltar a encarar a balança sem medo de ser feliz. E eis que meu endócrino me ajudou a tomar as rédeas da minha vida. Ele me deu as mãos e disse: “Você é linda, você é um estouro e eu estou do seu lado. Bora!” E eu fui.
A dieta em si é low carb/no carb. Relativamente fácil de fazer, embora restrita. Principalmente daquilo que a gente ama: carboidratos safados e doces. Acho que vale dizer que eu passei uma vida enganando muito bem, com as amigas achando que eu lido super bem com o fato de ser gorda. Afinal, tenho estilo, me visto bem (sempre comprando muito plus size bacana lá fora!), não deixo de fazer nada (viajo, frequento praia, piscina, academia, parque, tenho vida social etc.) e sou uma pessoa com mobilidade e alegria de viver.
Só que não, gente. Precisei recusar umas 10 entrevistas na última década dos amigos jornalistas, para falar sobre ser gorda e se achar o máximo.
O fato de eu ser saudável e estar sempre (mais ou menos) arrumada não significa que eu esteja de bem com a balança. Foram muitos momentos de insegurança, de medo, de neurose, de tristeza, de aborrecimento. De ouvir de pessoas estranhas que eu era linda, mas se eu emagrecesse ia ficar uma gata. De ter vergonha de pedir um extensor pro cinto de segurança no avião (baixinho pra ninguém me ouvir). Todas aquelas coisas que faz com que a gente coloque uma armadura daquelas bem pesadas pra aguentar o olhar feio das pessoas porque você está comendo sobremesa. Sua família achando que pode dizer qualquer coisa na sua cara, que não vai te magoar e te fazer chorar escondida (aparentemente o objetivo é dar uma força pra começar uma dieta).
E, gente, um número tão infinito de pequenas violências e humilhações que você vai ficando fechada, mais por que não tem outro jeito de ficar. A verdade é que o gordo é invisível. Ou tão visível – tal qual o elefante na loja de cristal -, que as pessoas dão a volta pra não ter que lidar com você.
E sim, falar abertamente sobre meu desconforto em ser obesa vai ao contrário de tudo o que a gente vem ouvindo por aí todos os dias. Estou bem consciente disso. Várias páginas e grupos em todas as redes sociais incentivando as gordas a saírem do armário da invisibilidade, ícones como a Tess Holiday provando que você pode ser gordíssima, glamurosíssima, casada com um gostosíssimo e ainda modelo, escritora e o que mais ela quer ser. E ela é tão linda. Linda e ponto. Não linda apesar de gorda ou por ser gorda.
E aí eu passei sim por um processo de empoderamento e reconstrução da minha autoestima.
Mas que não começou pela balança. A decisão de emagrecer foi tomada num ímpeto. Uma vontade de ficar linda, maravilhosa e gostosa. Pra mim. Pra poder tirar a roupa e me olhar no espelho e dar aquele beijinho no ombro.
Não teve nada a ver com saúde (a saúde, na verdade, vem de bônus, por que eu deixo de ser uma bomba relógio). O que eu quero mesmo é entrar em qualquer loja e caber em qualquer roupa. É parar de comprar apenas acessórios nas lojas lindas que eu amo porque lá não têm o meu tamanho de roupa. É parar de achar que eu não vou ser amada e desejada por um boy magia enquanto eu não estiver magra. É parar de ter medo de quebrar uma cadeira de plástico. De sentir vergonha na hora de sentar desconfortavelmente em uma cadeira de avião. De traçar uma reta entre a areia e o mar toda vez que eu quiser mergulhar na água, porque eu acho que tá todo mundo olhando a gorda na praia.
Eu fui no endócrino, eu fiz os exames, eu comprei os remédios, eu me organizei e eu fui. Sem pensar e sem respirar. E aí que muita coisa mudou na minha casa desde então. Aumentei a ingestão de carnes, folhas, frios, queijos e ovos e diminui todo e qualquer carboidrato e, principalmente, deixei de comprar doses cavalares de chocolates, meu grande vício. O resultado foi mais de 15kg desde novembro e um novo olhar para mim, meu corpo, meu desejo de ficar linda, lidar com meu medo de ter doenças relacionadas a obesidade e tudo o mais.
Mas eis que esse toda essa mudança teve um impacto na rotina do meu pequeno latifúndio familiar.
E começou assim:
– Mãe, prova esse chocolate que a vovó me deu. Tá muito bom!
-Mamãe não quer, filha. Obrigada.
– Só um pedacinho, mãe, vai?
Cinco minutos dela pedindo pra eu comer. Cinco minutos eu agradecendo e dizendo não. Até que:
– Filha, olha, Mamãe tá de dieta!
– Tá bom!
Sai a criança e dois minutos depois volta a criança:
– Mãe, o que é dieta mesmo?
Só consegui pensar: Victoria, filha, senta aí que lá vem textão.
E aí? Como explicar pra sua filha de seis anos o que é dieta?
Dizer qual a sua necessidade de fazer dieta e que isso não se aplicava a ela. (Porque sim, a primeira pergunta dela foi: mãe, eu preciso fazer dieta?) Que a gente tinha que ser feliz com nosso corpo, mas se não estivesse satisfeita e saudável tinha que resolver isso aí? Como explicar tantas gerações neuróticas com o corpo e os padrões impostos por essa sociedade doente e pouco empática? E ao mesmo tempo ensinar pra ela passar por cima de tudo isso e amar o corpo curvilíneo, que certamente herdou?
Foi um processo, gente. Foram alguns dias explicando, mostrando, olhando nós duas peladas de frente do espelho. Mostrando como ela era linda e perfeita e que a mamãe tava só querendo ser ela mesma, mas um pouco (um muito) menor. Nisso ela perguntou se era gorda. Ela apertava a inexistente barriga dela e achava que estava gordinha. Ela disse pra todos os amigos que também estava de dieta. E foi engraçado e meio triste vê-la tentar se relacionar comigo nessa questão. Ela perguntava se eu podia comer isso ou aquilo. No final das contas, resolveu fazer uma lista das comidas que eu podia comer para que ela não me oferecesse nada fora do cardápio.
Foram alguns dias para processar a mudança na minha rotina alimentar, as idas mais frequentes ao supermercado e ao fato de que a gente não mais comia a mesma comida. Fiquei triste de que, aos seis anos, ela precisou se explicar um dia quando fez uma brincadeira comigo. Ela disse que eu tinha um barrigão porque a gente tinha comido muito e ficou constrangida ao lembrar da nossa conversa. “Mãe, é só uma brincadeirinha! Eu não tô chamando você de gorda de verdade, não, tá?”
Eu fui uma criança muito magra, uma adolescente que lidou com a necessidade de perder aqueles famigerados 3 quilinhos e uma adulta que foi engordando progressivamente.
E chegar aos 44 anos fazendo o caminho de volta é uma coisa linda demais… Porque é tomar as rédeas da própria vida de uma maneira positiva. Mas eu daria tudo para que a Victoria não precisasse presenciar o processo duro e doído que é emagrecer (por que se fosse simples, tava todo mundo magro). E que ela não somatizasse esses aprendizados nela mesma.
Eu tento jamais ser radical com a alimentação dela, porque acho que isso pode ser sempre uma faca de dois gumes em uma família com problemas com obesidade. Vocês bem me conhecem e sabem que eu acho que equilíbrio é a chave de tudo. Um dia quando ela me perguntou se podia tomar um picolé de chocolate porque ela era magra e não estava de dieta, eu só pude responder: “Toma esse picolé porque ele está te fazendo feliz e você é linda de qualquer jeito!”
NOTA SOBRE ESSE POST
Esse post era pra ter terminado, mas ele tem uma divergência editorial que eu queria dividir com vocês. A Mari não queria publicar ele dessa maneira. Eu fiquei triste e ouvi suas ponderações, por que aqui quando uma não gosta, duas não postam. Mas esse é um post importante pra mim por uma série de motivos que vocês vão ver mais a frente.
Eu deixei ele engavetado meses para ver se tudo aquilo que ela tinha me dito fazia sentido pra mim e se eu poderia mudar esse que é um dos meus textos mais nus e crus… Porque lidar e falar sobre a obesidade aqui está sendo muito mais difícil do que falar sobre a minha separação, por exemplo.
E sabe o que aconteceu? Eu não quis mudar nada. Nem uma linha do meu discurso.
Argumentei que ela, enquanto amiga querida, mas pessoa magra, linda e sílfide não tem a menor ideia de como funciona a cabeça ou a vida da pessoa gorda. Que os pontos que a preocupavam eram justamente o X da questão e os maiores dramas que a pessoa gorda precisa enfrentar diariamente. E isso precisa ser dito. A conversa foi mais ou menos assim.
– Camila, mas como você vai falar que não quer emagrecer pra ser saudável? Como assim só ser gostosa? Você vai ser mal interpretada! Olha a responsabilidade!
– Mari, por que só a mulher magra pode ir na clínica de estética pra tirar aquelas três celulites e a estria invisíveis pra poder ficar mais gostosa? Por que a gorda precisa ser responsável e só pode falar de ser saudável? Eu sou saudável, caceta! Eu quero é me sentir gostosa e só vou parar a dieta quando eu tiver com meu peitão, bundão e pernão roliços do que jeito que eu bem quiser! (Camila, se exaltando, por que não lida bem com críticas)
– Cara (para sempre carioca), não entendi a parte do picolé de chocolate.
– Não quero que a Victoria pense que ela só pode comer picolé se ela for magra. Quero que ela coma picolé por que ela ama e está fazendo ela feliz.
(Eu sei, cara amiga gorda, que você tá me dando high five mental por esse final.)
– E essa história de que você quer se adequar às marcas de moda? Elas que estão erradas por não fazem numeração pra todas. Você tá querendo se adequar às marcas? Você surtou? Que mensagem é essa que você quer passar?
– Não quero me adequar a nada. Mas tô cansada de não achar uma jaqueta de couro maneira no meu tamanho, cansada de não conseguir caber numa calça jeans da marca gringa que eu adoro, de saco cheio de ter que viajar pro exterior com malas imensas pra poder comprar tudo o que eu quero nas marcas de lá que são mais acessíveis e mais estilosas. Já deu pra mim essa história de ter meu estilo limitado pelo que cabe em mim. Sim, as marcas pecam, limitam e discriminam. A gordofobia é real e é um sofrimento diário. Eu não preciso caber na Farm por que uma pessoa magra veste tamanho G lá. Eu quero poder rejeitar a Farm por que ela não tem nada a ver comigo e não por que as roupas que eles fazem não cabem em mim. Dá pra entender a diferença? Não sei se dá.
SE AME COMO VOCÊ É. ALTO LÁ.
GENTE! O mais importante dessa onda de valorização e levantar a bola de quem é minoria e invisível é justamente conseguir honrar o próprio discurso. De entender que o seu lugar de fala passa, principalmente, pelo seu desejo como indivíduo. Eu não vou ser obesa porque eu preciso honrar toda a classe de gordas do mundo que precisam se amar com todas as banhas que tem.
Sim, existem mulheres gordas e felizes com seus corpos e elas saem saltitantes e rebolativas e usam biquínis. Eu venci um montão de preconceitos no último ano em relação ao meu próprio corpo e não consigo nem explicar o quão libertador foi passar por cima de muitas das minhas neuroses e também pelo preconceito das pessoas perto de mim, e poder postar uma foto de maiô aqui com todas as minhas imperfeições perfeitas.
Mas seria hipócrita da minha parte dizer que eu estou feliz com o meu corpo do jeito que ele está agora só porque eu tenho que aceitar e me amar do jeito que você eu sou. Eu me amo, mas vou amar mais o meu corpo quando eu conseguir chegar aonde eu quero chegar. Ser eu mesma. Mas, menor. E eu não vou pedir desculpas por isso.
Imagem em destaque: de maiô, na praia, com tudo o que tem direito. Decotão, barriguinha e celulite. Um dia eu chego lá onde quero chegar. Mas, por enquanto, não tem mais espaço pra sentir vergonha do meu corpo.
11 Comentários
High five mental cheio de amor e sem açucar ❤️
Bacana Camila. Tudo o que vc fizer pra ser mais feliz vale a pena. Um beijo querida!!!❤
Que texto mais lindo! Adorei! Leve, verdadeiro e cheio de emoção! Obrigada por escrever
Gostei do post. Parabéns!
Essa é a Ca. “Raçuda” e delicda na mesma proporção. Lindo post. Vida. Desafios. Amadurecimento. Felicidade. Adorei querida!
TEXTO PERFEITO!!! Parabéns!!
Anna muito obrigada!
Gente, não fui eu quem escreveu esse texto não????? ❤️ Adorei. Sou gorda, tou passando pelo mesmo processo de emagrecimento desde setembro – e você traduziu tudo o que sinto! Tenho uma filhota de 8 anos e essas neuras de saber o que passar pra ela desse processo Tb me atormentam. Mas tá tudo incrível! Parabéns e força! Saber que somos lindas e incríveis independente da balança é libertador!
<3 esse texto somos nós Michelle. Obrigada por ler, se identificar, compartilhar. Beijo carinhoso.
Obrigada! Obrigada! Obrigada! Me senti muitas vezes como vc. Ainda estou na luta para me sentir bem comigo mesma. Boa sorte para nós.
Ivana, um passo de cada vez, sabendo que a dúvida ainda me assola, mas só momentaneamente. Força na sua batalha e estou aqui para o que precisar. A troca é essencial.