Mãe na Finlândia: qual o limite da liberdade?

Depois de 6 anos morando em Helsinque, na Finlândia, confesso que eu já não sinto tanto o choque cultural. Fui deixando de me espantar e comecei a aceitar e admirar algumas coisas, como a independência das crianças. Desde muito cedo, indo e vindo da escola, do parquinho e das suas atividades extra-curriculares, elas são incentivadas a assumir suas rotinas e responsabilidades.

As crianças na Finlândia estudam em seus bairros e são matriculadas na escola mais próxima de suas casas porque vão e voltam sozinhas a partir do primário – sim, no início assusta, mas a gente se acostuma e depois acha ótimo! Desde a pré-escola, são organizados pequenos passeios com as turmas, que saem nas ruas com os professores responsáveis. Um dos objetivos dos passeios é ensinar as crianças a usar o transporte público e como se comportar nele. É a coisa mais fofa, ganho o dia quando entro em um metrô cheio de rostinhos sorridentes e curiosos! Todas ​têm seus telefones e chaves de casa a partir do primeiro ano do primário, e são bem independentes. Nas escolas, aprendem as leis básicas de trânsito, respeito ao pedestre e aos ciclistas, e a ler placas e mapas em aulas práticas.

Também é ensinada a importância de saber o número do telefone de emergência, que funciona tanto para chamar a polícia ou uma ambulância. Através desse serviço, as crianças podem denunciar até os próprios pais em caso de agressão física ou abuso (o país tem um alto índice de alcoolismo, é importante frisar.)

Reparo muito que todos aqui lidam com a criança de uma maneira muito mais natural. Não quero dizer que são tratados como adultos; nas bibliotecas, nos hospitais, bancos,​na maioria dos lugares há um espaço para as crianças serem crianças, brincarem, lerem etc… Mas quando são questionados em consultas médicas de rotina, por exemplo, ninguém “muda” a voz ou fala no diminutivo para se dirigir a uma criança. Perguntam primeiramente a eles o que sentem ou o que aconteceu, não aos pais.

Enfim, eles são independentes, livres e respeitados. E nesse ambiente e com essa liberdade, cresceu a Gabriela, minha filha​, hoje com 11 anos.

Até agora, ser mãe era um ofício natural e relativamente fácil. Totalmente relax nunca é, mas devo confessar que tive sorte e fui presenteada (eu sei, todas nós fomos), mas é realmente como me sinto. “Presente” é também o significado do nome dela. Desde que chegou nesse mundo, ela mostrou que veio muito mais para me ensinar do que aprender. Me ensinar a ser uma pessoa melhor, mais paciente, com mais senso de humor, mais organizada e um pouco mais ​produzida. Tudo o que uma leonina cheia de personalidade e vaidade​ como ela é!

Ela já tem sua rotina (coisa que eu própria não tenho até hoje). Arruma a cama de manhã, se prepara para ir para a escola, volta, faz a lição de casa, come e lava seu próprio prato. Depois vai para as atividades extras escolares, me mantendo avisada de onde está. Juro que eu não tenho que falar nada!

Por ela ser assim, também não pego (muito)​ no pé dela e sempre dei muita liberdade, sem tantas regras, desde que as coisas funcionem e os poucos acordos sejam respeitados. Não acho que muita rigidez funcione pra nada. E temos convivido bem até então, com um ou outro, atrito aqui e ali.

Enfim, tudo correu bem até hoje, quando ela não apareceu em casa durante toda a tarde depois da escola (para piorar, ela estava sem telefone). Após as aulas, há um espaço em todos os bairros para as crianças ficarem depois da​ escola durante a tarde, supervisionadas por um adulto, onde podem fazer a lição, jogar, e socializar.

A Gabriela geralmente me liga para avisar que vai, com quem e até que horas. Mas hoje não ligou. Ela não foi pra aula de dança e chegou em casa já no fim do dia, anoitecendo, sem ter feito a lição de casa! Como? Por quê? Foram as minhas primeiras perguntas. “Eu não sei!”, essa foi a resposta dela. E eu não gostei, claro! Um lado meu quis gritar, ter uma crise, mas por um minuto, um outro lado meu, quis entender o motivo. Respirei e fiquei por 1 minuto séria e em silêncio, até ouvir um pedido de desculpas, muito sincero e sentido: “Eu sei que estou errada e que não deveria ter feito isso”, ela disse com sinceridade e calma, sem nenhuma maldade ou noção do quanto a mente de uma mãe sem notícias pode criar e se desesperar. “Eu não quero mentir, mãe, mas eu só quis me divertir com as minhas amigas!”

​E vieram os meus questionamentos: E aí? Quem nunca quis um dia na vida chutar o balde?

Me tranquei no banheiro para me acalmar, tomar um banho e ter tempo para pensar (eu e ela). Me dei conta que daqui pra frente essa linha tênue de confiança x ​liberdade será cada vez mais fina e​ delicada. E importante de se estabelecer e reforçar a cada dia​! Hoje me dei conta que, a cada dia, ela irá querer esticar a corda mais e mais, vai testar (todos) os limites da liberdade vigiada e da minha confiança!

Mas até onde isso vai? Como manter sem quebrar? Está aí nosso eterno aprendizado! Hoje entendi que ela não está mais completamente sob a minha asa, e que, assim como eu, ela é precocemente independente e decidida. E vai longe!

Uma​ parte minha – aventureira,​ independente, curiosa, que quis quebrar todas as regras, testar limites e paciência – a admira e reconhece nela a minha genética, e entende que, como minha herdeira, irá cedo por o pé na estrada. Mas um outro lado meu, o de mãe zelosa​ – que preza a confiança acima de tudo, a conversa, a importância de ser consultada e ouvida, a proteção, o zelo e o respeito, como valores básicos para qualquer relação – ,  sofre! E vamos assim aprendendo juntas a cada dia os nossos limites. Aprender também a dar castigo e esclarecer as regras mesmo que seja para quebrá-las.

P.S. O resultado foi uma semana em casa, sem amigas ou TV. Mesmo assim, ela foi dormir me perguntando se eu havia aceitado as desculpas dela e se por isso poderia ficar sem castigo;)

 

 Finlandia2 

 

*Todas as fotos pertencem a Aime Virkkilä Accorsi

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